PENSE

FÉ E OBRAS EM TIAGO 2.14-26

| Por Marcio Gonçalves

         A carta mais difícil da bíblia para se evitar uma aparente contradição da doutrina da salvação pela graça ao que parece está em Tiago. Especialmente 2.14-26. Primeiro  porque é um trecho bem extenso e não poucos versos isolados. Segundo por que aparentemente, Tiago usa o exemplo do mesmo personagem histórico que Paulo, para argumentar o que parece para muitos uma salvação também pelas obras. Terceiro por que Abraão é tido como pai na fé.

        Este livro foi motivo de grandes controvérsias no período da reforma. Informam-nos que o próprio Martinho Lutero considerou-a como “‘uma epistola sem valor’ e somente sua autenticação pela igreja primitiva impediu que alguns o omitissem do cânone”¹.  Mostrarei aqui as conclusões a que cheguei e talvez possa ajudar aqueles que sinceramente querem entender a aparente contradição. Vamos ao texto.

Tiago 2.14 De que adianta, meus irmãos, alguém dizer que tem fé, se não tem obras? Acaso a fé pode salvá-lo?
15 Se um irmão ou irmã estiver necessitando de roupas e do alimento de cada dia 16 e um de vocês lhe disser: “Vá em paz, aqueça-se e alimente-se até satisfazer-se”, sem porém lhe dar nada, de que adianta isso?
17 Assim também a fé, por si só, se não for acompanhada de obras, está morta. 18 Mas alguém dirá: “Você tem fé; eu tenho obras”. Mostre-me a sua fé sem obras, e eu lhe mostrarei a minha fé pelas obras.
19 Você crê que existe um só Deus? Muito bem! Até mesmo os demônios crêem — e tremem! 20 Insensato! Quer certificar-se de que a fé sem obras é inútil?
21 Não foi Abraão, nosso antepassado, justificado por obras, quando ofereceu seu filho Isaque sobre o altar? 22 Você pode ver que tanto a fé como as obras estavam atuando juntas, e a fé foi aperfeiçoada pelas obras. 23 Cumpriu-se assim a Escritura que diz: “Abraão creu em Deus, e isso lhe foi creditado como justiça”, e ele foi chamado amigo de Deus.
24 Vejam que uma pessoa é justificada por obras, e não apenas pela fé.  
25 Caso semelhante é o de Raabe, a prostituta: não foi ela justificada pelas obras, quando acolheu os espias e os fez sair por outro caminho? 26 Assim como o corpo sem espírito está morto, também a fé sem obras está morta.


          Tratarei o que considero a questão mais crítica e depois acredito que as outras coisas serão mais fáceis de entender.
          A grande dificuldade segundo vejo, está na comparação das declarações paulinas sobre o mesmo personagem Abraão.

Rm.4.1Portanto, que diremos do nosso antepassado Abraão? 2 Se de fato Abraão foi justificado pelas obras, ele tem do que se gloriar, mas não diante de Deus. 3 Que diz a Escritura? “Abraão creu em Deus, e isso lhe foi creditado como justiça.” 4 Ora, o salário do homem que trabalha não é considerado como favor, mas como dívida. 5 Todavia, àquele que não trabalha, mas confia em Deus, que justifica o ímpio, sua fé lhe é creditada como justiça

Gl.3.6 Considerem o exemplo de Abraão: “Ele creu em Deus, e isso lhe foi creditado como justiça”. 7 Estejam certos, portanto, de que os que são da fé, estes é que são filhos de Abraão. 8 Prevendo a Escritura que Deus justificaria os gentios pela fé, anunciou primeiro as boas novas a Abraão: “Por meio de você todas as nações serão abençoadas”. 9 Assim, os que são da fé são abençoados junto com Abraão, homem de fé.

Hb.11.8 Pela fé Abraão, quando chamado, obedeceu e dirigiu-se a um lugar que mais tarde receberia como herança, embora não soubesse para onde estava indo. 9 Pela fé peregrinou na terra prometida como se estivesse em terra estranha; viveu em tendas, bem como Isaque e Jacó, co-herdeiros da mesma promessa. 10 Pois ele esperava a cidade que tem alicerces, cujo arquiteto e edificador é Deus. 11 Pela fé Abraão — e também a própria Sara, apesar de estéril e avançada em idade — recebeu poder para gerar um filho, porque considerou fiel aquele que lhe havia feito a promessa. 12 Assim, daquele homem já sem vitalidade originaram-se descendentes tão numerosos como as estrelas do céu e tão incontáveis como a areia da praia do mar.



TIAGO  =   Tg.2.21 Não foi Abraão, nosso antepassado, justificado por obras, quando ofereceu seu filho Isaque sobre o altar?"      


 PAULORm.4.2 Se de fato Abraão foi justificado pelas obras, ele tem do que se gloriar, mas não diante de Deus. 3 Que diz a Escritura? “Abraão creu em Deus, e isso lhe foi creditado como justiça.”




Tanto Tiago como Paulo parece que estão ensinando que somos justificados por Deus, mas por meios diferentes e excludentes. Paulo diz que a justificação de Abraão foi somente pela fé sem obras. Tiago parece dizer que a justificação de Abraão foi pela fé e também pelas obras. Tiago ao que parece não exclui a fé mas inclui as obras. Paulo defende a fé mais parece excluir as obras para a justificação.

Que Abraão creu todo mundo concorda. Que Abraão obedeceu todo mundo concorda. Que Abraão foi justificado também todo mundo concorda. A pergunta mais importante é o que justificou Abraão? Sua fé ou suas obras? A resposta para esta pergunta está na resposta de outra. Quando Abraão foi justificado?

Tiago diz que Abraão foi justificado por obras quando ofereceu seu filho Isaque sobre o altar (v.21). Ele diz que a fé operou junto com as obras, e que através das obras a fé se consumou. (v.22). O que veio primeiro? Segundo Tiago, já havia fé quando as obras apareceram. As obras consumaram e revelaram a fé. As obras das quais Tiago está falando foi a de Abraão oferecer seu filho no altar. Isso está registrado em Gn.22. Deus defendeu (justificou) a fé de Abraão quando ele levantou o cutelo para sacrificar seu filho (Gn.22.12). Tiago diz que este ato de Abraão, fez as escrituras se cumprirem. Que escritura? (Tg.2.23) Esta passagem:

Gn.15.4 Então o SENHOR deu-lhe a seguinte resposta: “Seu herdeiro não será esse. Um filho gerado por você mesmo será o seu herdeiro”. 5 Levando-o para fora da tenda, disse-lhe: “Olhe para o céu e conte as estrelas, se é que pode contá-las”. E prosseguiu: “Assim será a sua descendência”. 6 Abrão creu no SENHOR, e isso lhe foi creditado como justiça.

Mas antes disso Abraão ainda não havia sido justificado? Tiago está ensinando que sim, pois ele cita o momento da justificação de Abraão quando ele creu. Neste ponto Tiago e Paulo estão ensinando que Abraão foi justificado em Gn.15. quando creu e não em Gn.22 quando obedeceu.

Quando Paulo diz que Abraão foi justificado pela fé ele está citando o episódio de Gn.15 e não o de Gn.22. Tiago quando fala das obras não está em mente Gn.15. e sim Gn.22. Conforme vemos Paulo não está ensinando que Abraão não obedeceu. Ele está ensinando que a justificação de Abraão aconteceu antes de qualquer obra da parte dele. Tiago não está ensinando que Abraão não foi justificado pela fé e sim que as obras acompanharam posteriormente a fé que ele teve em Deus.

As obras têm um papel muito importante. Qual? Não o de justificar, mas até certo ponto o de revelar os que são justificados. Ela é uma fotografia e não a imagem real. Se não há imagem real, não haverá fotografia. Este é o grande ensino de Tiago. O crente que crer, fará boas obras. O que não faz, não crer. As obras então, não servem em si mesmas para justificar, mas para te dar certeza pessoal da justificação. Não que as suas obras conferem a Deus o padrão de santidade que exija sua justificação, mas sim que as obras de Jesus foram tão perfeitas que transformaram seu coração para dedicar-se as boas obras de gratidão.  Quem foi justificado agradece. Quem não agradece, não crer na justificação.


COMENTÁRIO DOS OUTROS TRECHOS
Tiago 2.14 De que adianta, meus irmãos, alguém dizer que tem fé, se não tem obras? Acaso a fé pode salvá-lo?
Não que a fé salve. Nenhuma fé pode salvar. O que Tiago está dizendo aqui é que este tipo de fé que não produz frutos não é verdadeira e por isso não é uma fé para a salvação.
15 Se um irmão ou irmã estiver necessitando de roupas e do alimento de cada dia 16 e um de vocês lhe disser: “Vá em paz, aqueça-se e alimente-se até satisfazer-se”, sem porém lhe dar nada, de que adianta isso?
A fé que salva é inicialmente uma realidade entre o crente e Deus somente. Não bastando mas nada além de crer no Cristo como fez o ladrão da cruz. Mas quando após a fé existe uma vida de relações humanas pela frente, esta deve ser evidente aos homens através das boas obras. Noutras palavras. Deus não precisa ver nossas obras para se certificar se temos fé genuína ou não, mas os homens, e nós mesmos precisamos.
17 Assim também a fé, por si só, se não for acompanhada de obras, está morta. 18 Mas alguém dirá: “Você tem fé; eu tenho obras”. Mostre-me a sua fé sem obras, e eu lhe mostrarei a minha fé pelas obras.
É importante entender que Tiago está resolvendo um problema na igreja judaica. Falsos professos. Neste trecho Tiago mostra que é impossível, na vida diária, fé e obra existirem separadas uma da outra. Se a fé é verdadeira, estará sempre de mãos dadas as obras.
19 Você crê que existe um só Deus? Muito bem! Até mesmo os demônios crêem — e tremem! 20 Insensato! Quer certificar-se de que a fé sem obras é inútil?
Tiago aqui deixa bem claro o tipo de fé falsa da qual fala acima. É uma fé demoníaca, morta e inútil. Não é confiança e sim assentimento mental de uma realidade. A fé salvífica nos faz humilhar-nos a Deus e não se exaltar diante dEle. Seria e fé que Deus nos dá (Ef.2.7-9) poderosa para nos salvar, mas não suficientemente poderosa para nos fazer realizar boas obras?
25 Caso semelhante é o de Raabe, a prostituta: não foi ela justificada pelas obras, quando acolheu os espias e os fez sair por outro caminho? 26 Assim como o corpo sem espírito está morto, também a fé sem obras está morta.

O que Tiago aprova em Raabe certamente não foi sua atitude falsa, mas sua fé genuína. Não aquilo que ele de fato fez, mas sim por que fez. Pela fé no Senhor.

Em resumo: Paulo está tratando sobre a base da justificação e Tiago sobre os frutos da justificação.

¹(Comentário Histórico Cultural do Novo Testamento _ Lawrence O. Richards; p.511. Comentário de Tiago)

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